“O Trágico Dilema
Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro.”
Mário Quintana.
hermético
(francês hermétique)
adj.
1. Encimado por um hermes.
2. Completamente fechado (de modo que nem o ar possa entrar, nem o fumo ou vapor sair). = CERRADO, SELADO, VEDADO
3. Que é difícil de compreender. = INTRINCADO, OBSCURO ≠ INTELIGÍVEL
4. Relativo à alquimia.
(http://www.priberam.pt/dlpo/)
Fico profundamente irritado quando ouço falar que meus versos são herméticos, principalmente por pessoas que fizeram o uso desta palavra tão frequente, que esta se despregou de seu significado original. Então passa a ser hermético tudo aquilo que estas pessoas não entendem, no entanto muitas vezes a culpa não é dos versos, mas sim da falta de capacidade destas pessoas de compreendê-los.
Outra coisa que se graça é a mania de colocar que a literatura tem de ser perfeitamente compreensível, que a mensagem deve ser captada de imediato, sem nenhum esforço do interlocutor. Tenho por mim que isto é uma grande falácia, mais uma vez usada para disfarçar uma falta de capacidade de compreensão, ou pior que isto, de preguiça vernácula, onde o indivíduo se põe na defesa dos fracos e oprimidos que não compreenderão aquela poesia. Quando a pessoa, na verdade, fala de uma incapacidade própria.
Pois falo que a estas pessoas falta a sensibilidade exigida ao poema. Já ouvi que a pessoa que lê poemas também é um poeta, careço de saber a origem desta ideia, mas a endosso, é necessário um processo de reconstrução das sensações que o poema envolve, e que nem sempre são as do poeta, assim o leitor se apropria do texto como se o recriasse, tornando absolutamente desnecessário saber o significado original, já que na recriação, um novo poema original surge na mente do leitor. Já cansei de me surpreender com pessoas descobrindo coisas em meus poemas, que nunca me haviam passado pela cabeça, e que no entanto faziam o maior sentido. Sinto-me como veículo condutor da palavra, o leitor encontrou a sua realidade em meu poema, de forma justa e honesta se apropriou dele, tornou-o seu, o que para mim dá um sentido máximo de realização.
Existem sim textos que são necessárias a fácil compreensão e nitidez, contas de água e luz, extratos bancários, bulas de remédio, e nem sempre estes são assim de tão fácil entendimento, muitas pessoas penam para perceber que foram mais uma vez espoliadas e que todas aquelas taxas são uma verdadeira derrama.
Ao poema não cabe entendê-lo, e sim senti-lo, a estrutura de um bom poema é polissêmica e envolve elementos diversos, nem sempre decifráveis, mas que estão lá. Ora não é necessário ser músico para ouvir uma orquestra sinfônica, saber de cada instrumento, seu uso sua afinação, da composição do autor, dos arranjos do maestro, e da execução, no entanto qualquer pessoa de mínima sensibilidade ao belo, se deliciará com o resultado final da execução dos músicos. Não é necessário entender a música para gostar dela. O mesmo se dá com a poesia, devemos ouvir o conjunto harmônico, os resultados de todas as peças que se encaixam. Se o texto for auto explicativo, não é poesia, é prosa.
Coisa mais cansativa é um poeta explicando seu poema, não raro em apresentações, um sujeito vai fazer uma leitura e se desdobra em explicações infinitas sobre o texto a ser apresentado, tirando dos ouvintes o prazer de decifrá-lo, ou pior, cansando tanto a platéia com explicações, que o poema se perde. Para mim não existe nada mais ofensivo que pedir para explicar um poema, se isto se faz necessário, relembro Mário Quintana, um dos dois foi incompetente. Ou eu na confecção, ou a pessoa em questão na decifração de suas sensações.
Vivemos em uma sociedade onde tudo é imediato, prático, técnico, onde tudo deve ter função, explicação, se encaixar perfeitamente. Dentro deste contexto, um poema de difícil decifração tem um papel primordial, o de causar confusão nas mentes esterilizadas pela prática. Aos que só buscam respostas imediatas, sugiro que se afastem do poema.
Existe um conhecido meu, não sei mais se posso chamá-lo de amigo depois de certas mazelas, que é obcecado pela imagem do “corguinho”, por sua simplicidade e caráter bucólico, que aliás se apropriou do poeta Castelo Hanssen. Vejo aqui um grande equívoco, e uma grande injustiça com o “corguinho”, um pequeno riacho tem toda uma gama de complexidades, não é apenas uma figura geográfica perdida no tempo e no espaço, é sua fauna, sua flora, sua ecologia, sua história, lembrando José Marti, “Porque el arroyo de la sierra. Me complace mucho mas que el mar.” Pois afirmo que se devemos simplificar o poema para ele ser melhor compreendido, traímos quem nos lê. É menosprezar a capacidade do humano como ser contemplativo, que vê no “corguinho” também a sua história e as histórias que o envolvem, e não simplesmente um curso de água.
Por fim decifrando a palavra hermético, gosto mais da definição que são coisas relacionadas ao Deus Hermes, figura importante no panteão dos deuses pois possibilita a comunicação entre deuses e homens, ora, o poeta pode ter muito bem esta função, de comunicar-se com o sagrado através do poema. Outra definição que me apraz, é a de ser relativo à alquimia, onde empresto a voz de outro poeta magnífico, Rimbaud, que nos diz que no poema e na palavra executamos a transmutação, onde se dá a principal função da alquimia, não a ordinária capacidade de transformar chumbo em ouro, mas de transformar a palavra em nobre metal, que tine, e no processo transmuta o próprio poeta em algo mais nobre.
A poesia sobrevive à sua própria decifração.