Edson
Bueno de Camargo (1962), poeta mauaense na literatura contemporânea com
aproximação surrealista por trabalhar imagens complexas, obscuras,
muitas vezes ancoradas à memória e ao prosaísmo, transfigurando-as em
montagem poética.
Não
importa a data da publicação, aprendemos com EBC que o último livro
sempre está em lançamento, apresenta-o para a propagação do diálogo com
os leitores, assim mantém o texto vivo. Citamos o último, porque é
o último que tradicionalmente se lança, embora EBC não seja nem um pouco
convencional, percorremos o ditado popular/bíblico que notifica, "os
últimos serão os primeiros". Nesse sentido, encontramos a possibilidade
de conhecer e interagir com as outras publicações do escritor: Cabalísticos (2010), De
lembranças & Fórmulas Mágicas (2007), O
mapa do abismo e outros poemas (2006), Poemas
do Século Passado (2000), entre
participação em antologias, revistas, jornais e internet, mantendo viva
a obra do escritor, tendo o último como abertura para o
diálogo.
O
último livro, no momento, publicado pela Editora Patuá — São Paulo/2013,
trata-se de um conjunto de poemas intitulado como a
fome insaciável dos olhos. A capa compõe-se de uma mistura
de azul com verde água, mais parece manchas, traços suaves e leves,
cabeça ou mapa em marca d'água. Quem sabe? Tudo pode ser nesse espaço
imaginário até a recuperação de Carlos Drummond de Andrade no poema "as
janelas olham". Ao fazer a referência averigua-se o trabalho com o
material poético — a
palavra. Essa palavra vista como "pedra", que se
concretiza em imagens.
O
livro está enxertado da palavra "olhos" ou cognatos que simbolizam o
olhar, ou ainda indiciam elementos do olhar como "pálpebra". Uma outra
seleção que mostra semas estranhos da linguagem do cotidiano como
"alquebram", "pórticos", "adobe" entre outras. Às vezes as palavras são
familiares, mas estão em contextos que nos causam estranhamentos,
criando, assim, imagens poéticas.
João
Cabral de Melo Neto também trabalha com pedra/palavra. No texto "A
inspiração e o trabalho de arte", nos ensina que "cada poeta tem
a sua poética. Ele não está obrigado a obedecer a nenhuma regra", também
nos situa que "a composição literária oscila permanentemente entre dois
pontos extremos a que é possível levar a ideia de inspiração e trabalho
de arte". É nesse contexto que constrói seus poemas, posto que é n"o
chão da oficina / é a fábrica e útero do mundo" / "que repousam nas
línguas", é a morte, a palavra perdida, a consciência da inconsciência,
a busca do novo ser, porque a poesia é trabalho da descontinuidade à
continuidade, segundo Bataille.
EBC
faz esse trabalho com o olhar, mas não o singelo olhar de apenas ver,
seu olhar é profundo, procura captar a imagem por diversos ângulos —
primeiro anotava palavras e analisava-as para refazê-las, tornando-a
poesia. Hoje também refaz, no entanto, o olho nu não lhe é suficiente,
por isso usufrui da máquina fotográfica como instrumento tecnológico que
o auxilia a multiplicar seus olhares. Quando menos se espera, flashes para apropriar-se do objeto,
não para uma simples descrição, mas como corpo que espera seu corpo para
obter a intimidade poética, que por ora vai além e adentra na memória
interior, promovendo sensações corpóreas.
Desejo,
inspiração, transpiração conferem em seus poemas, além da paixão e do
trabalho de seleção do material poético, EBC processa com a
intertextualidade. Este livro aponta "René Magritte", surrealista do
início do século XX, a aventura de "Ulisses e Penélope", "o pomar
perdido de Éden" como também faz inferências implícitas a deuses e
deusas, filósofos, ideias, carnifica Nietzsche, Glauber Rocha, monstros,
bruxas.
Para
quem o conhece de perto sabe que é um escritor que gosta de conversar,
talvez por isso propõe remetentes, homenagens a amigos próximos como o
poeta Claudio Willer, a Professora Fátima Nunes, Roberto Piva, Celso de
Alencar, entre leitores anônimos. Notamos um toque de prosaísmo do
cotidiano, das fábricas de porcelanas, da cidade de Mauá, um "Q" de
paisagem viva em suas lembranças.
Encontramos,
nesse sentido, um pouco de Merleau-Ponty em Fenomenologia
da Percepção quando o filósofo "compreende o papel do corpo
na memória se a memória é não a constituinte do passado, mas um esforço
para reabrir o tempo a partir das implicações do presente, e se o corpo,
sendo nosso meio permanente de tomar atitude e de fabricar-nos assim
pseudopresentes, é o meio de nossa comunicação com o tempo, assim como
com o espaço". É dessa forma que EBC revive cineticamente a memória nas
mais profundas sensações afetivas de seu corpo humano com o corpo da
palavra, gerando fenômenos de imagens, sons, ritmos, cor em quadros de
versos imagéticos singulares e obscuros. As lembranças do poeta
interagem com a memória viva que codifica em imagens vivas como "velhas
fotografias, livros amarelos, papéis velhos" ou no poema "óleo" esclarece que é (mais
uma vez / traído pela memória / a curta de parcas lembranças" ou o
próprio "teia
de aranha" e
assim corre o livro inteiro "lembranças
baças" para
não dizer em toda a sua obra com a titulação de seu primeiro livro Poemas
do Século Passado (1982-2000), não são
registros do passado nem montagem de uma natureza morta, pelo contrário,
são imagens vivas de seu tempo.
A
conversa é uma dinâmica viva, não impõe uma voz em seus textos, tanto
que em seus últimos trabalhos não encontramos nenhuma pontuação, a não
ser os parênteses "()" para esclarecer a provável obscuridade de seus
textos. Lemos também os espaços em branco, apesar de distribuir o poema
em versos livres e brancos, não se apropria da totalidade da página em
branco, mas preocupa-se com criação de imagens obscuras transpassadas
por sons a partir de aliterações e assonâncias. Como os versos "as
pálpebras / alquebram / em sono senil" no verso seguinte "as sombras /
são pedras duras / de quebrar / em sonhos". E assim, constrói seu ritmo
poético.
Vale
a pena lembrar que não utiliza letras maiúsculas, nem no título dos
poemas, nem no início de seus versos. Deixa solto para que o leitor
possa transpor seu corpo e voz ao corpo do poema. Há letras maiúsculas
somente para os substantivos próprios no interior dos poemas. Dessa
forma, não encontramos inconsciência ou tropeços de uma manipulação
regrada pela instituição de pontos e letras
maiúsculas.
Embora
os poemas de EBC façam analogias aos sonhos e desmascarem a
materialização do sono, recorte de inconsciência, percebe-se em sua
poética o trabalho minucioso do olhar, não um olhar qualquer, mas um
olhar observador, terno, do namoro sagrado dos elementos da Natureza, de
um olhar que está sempre com fome em capturar imagens. Aí está o
livro a
fome insaciável dos olhos, de um olhar desejante e faminto
de imagens. Essas imagens apresentam-se singulares e obscuras, tais como
no primeiro verso do poema "tudo
o que me pedes"
— "se
tudo o que me pedes / é meu olho ainda quente / sobre a palma rósea /
desta mão de luas novas / (gelo orgânico)" ... Camargo trabalha com o
paradoxo visível e enigmático, já que é perceptível o gelo derretendo
sobre a mão, no entanto, pinta com as palavras a lembrança da obra
surrealista do artista plástico Salvador Dalí em A
persistência da memória, visto que parece carregar um olho
sobre a palma da mão que pede tudo, que tudo é possível, inclusive a
solicitude de um olho. Contudo, propõe o não desnudar a imagem, pintado
com metáforas em que tenta traçar a visualidade ao trazer o "gelo
orgânico" na palma da mão humana ou no poema em que prato e xícaras
respiram. Essas e outras imagens são capturadas pelos olhos famintos,
que são insaciáveis.
Os
elementos em seu trabalho não conduzem como seres mortos, porque ganham
autonomia e liberdade no sono e sonhos. Essas imagens são singulares e
"sonho vivo / quando morto", sonho que estou morto e estas me devoram
com os olhos". As imagens singulares são fortes, compõem o mundo
imagético, da reflexão, do espelho, da memória, de uma irrealidade real,
poética, ritmada. Efetua a mimese platônica ao adentrar no perigo
poético com sensibilidade profunda de todas as sensações, aspiradas
pelos múltiplos olhares, visto que não é apenas o poeta que olha, as
imagens olham, o olho olha, ganha vida a todos os elementos, são
protagonistas provocando uma dialética subjetiva.
Essa
imagem não é fruto da inconsciência, mas do trabalho de montagem,
aglutinando imagens familiares a estrambólicas, aproximando as imagens
ao território infantil, do mundo das possibilidades, procura um olhar
primeiro, pueril, escondido nas próprias palavras, no carregar
esquizofrênico, criativo da humanização do objeto poético. Isso porque
configura o sensível do olhar incansável, insaciável que dinamiza em
todos os poemas e em todas as palavras que lembra ou deixa vestígio dos
olhos — dos olhos que não somente pertencem ao poeta, mas se multiplicam
entre os leitores, o poema, o poeta. Um olhar que comunga o eu com o
outro.