domingo, 27 de julho de 2014
Edson Bueno de Camargo o poeta do contemporâneo com aproximação surrealista
Edson Bueno de
Camargo o poeta do contemporâneo com aproximação surrealista
Márcia Plana[1]
Edson Bueno de Camargo (1962) poeta mauaense
na literatura contemporânea com aproximação surrealista por trabalhar imagens
complexas, obscuras, muitas vezes ancoradas a memória e ao prosaísmo,
transfigurando-as em montagem poética.
Não importa a data da publicação, aprendemos com EBC que o último livro sempre está em
lançamento, apresenta-o para a propagação do diálogo com os leitores, assim
mantém o texto vivo. Citamos o último,
porque é o último que tradicionalmente se lança, embora EBC não seja nem um
pouco convencional, percorremos o ditado popular/bíblico que notifica, “os
últimos serão os primeiros”. Neste sentido, encontramos a possibilidade de conhecer
e interagir com as outras publicações do escritor: cabalísticos Orfpeu (2010), De
lembranças & Fórmulas Mágicas (2007), O mapa do abismo e outros poemas (2006), Poemas do Século Passado (2000), entre participação de antologias,
revistas, jornais e internet, mantendo viva a obra do escritor, tendo o último
como abertura para o diálogo.
O último livro, no momento, foi publicado
pela Editora Patuá - São Paulo/2013, trata-se de um conjunto de poemas
intitulado como a fome insaciável dos
olhos. A capa compõe-se de uma mistura de azul com verde água, mais parece manchas,
traços suaves e leves, cabeça ou mapa em marca d’água. Quem sabe? Tudo pode ser
nesse espaço imaginário até a recuperação de Carlos Drummond de Andrade no
poema “as janelas olham”. Ao fazer a referência averígua-se o trabalho com o
material poético - a palavra. Esta palavra vista como “pedra”, que se
concretiza em imagens.
O livro está enxertado da palavra “olhos” ou
cognatos que simbolizam o olhar, ou ainda indiciam elementos do olhar como “pálpebra”.
Uma outra seleção que mostra semas estranhos da linguagem do cotidiano como
“alquebram”, “pórticos”, “adobe” entre outras. Às vezes as palavras são
familiares, mas estão em contextos que nos causam estranhamentos, criando,
assim, imagens poéticas.
João Cabral de Melo Neto também trabalha com
pedra/palavra. No texto, A inspiração e o
trabalho de arte, nos ensina que “cada poeta tem a sua poética. Ele não
está obrigado a obedecer a nenhuma regra”, também nos situa que “a composição
literária oscila permanentemente entre dois pontos extremos a que é possível
levar a ideia de inspiração e trabalho de arte”. É neste contexto que constrói seus
poemas, posto que é n“o chão da oficina/ é a fábrica e útero do mundo” / “que
repousam nas línguas”, é a morte, a palavra perdida, a consciência da
inconsciência, a busca do novo ser, porque a poesia é trabalho da
descontinuidade à continuidade, segundo Bataille.
EBC faz este trabalho com o olhar, mas não o
singelo olhar de apenas ver, seu olhar é profundo, procura captar a imagem por
diversos ângulos - primeiro anotava palavras e analisava-as para refazê-las,
tornando-a poesia. Hoje também refaz, no entanto, o olho nu não lhe é
suficiente, por isso usufrui da máquina fotográfica como instrumento tecnológico
que o auxilia a multiplicar seus olhares. Quando menos se espera flashes para apropriar-se do objeto, não
para uma simples descrição, mas como corpo que espera seu corpo para obter a
intimidade poética, que por hora vai além e adentra na memória interior, promovendo
sensações corpóreas.
Desejo, inspiração, transpiração conferem em
seus poemas, além da paixão e do trabalho de seleção do material poético, EBC processa
com a intertextualidade. Este livro aponta “René Magritte”, surrealista do
início do século XX, a aventura de “Ulisses e Penélope”, “o pomar perdido de
Éden” como também faz inferências implícitas a deuses e deusas, filósofos,
ideias, carnifica Nietzsche, Glauber Rocha, monstros, bruxas.
Para quem o conhece de perto sabe que é um
escritor que gosta de conversar, talvez por isso propõe remetentes, homenagens
a amigos próximos como o poeta Cláudio Willer, a Professora Fátima Nunes, Roberto
Piva, Celso de Alencar entre leitores anônimos. Notamos um toque de prosaísmo
do cotidiano, das fábricas de porcelanas, da cidade de Mauá, um “Q” de paisagem
viva em suas lembranças.
Encontramos, neste sentido, um pouco de
Merleau-Ponty em Fenomenologia da
Percepção quando o filósofo “compreende o papel do corpo na memória se a
memória é não a constituinte do passado, mas um esforço para reabrir o tempo a
partir das implicações do presente, e se o corpo, sendo nosso meio permanente
de tomar atitude e de fabricar-nos assim pseudopresentes, é o meio de nossa
comunicação com o tempo, assim como com o espaço”. É desta forma que EBC revive
cineticamente a memória nas mais profundas sensações afetivas de seu corpo
humano com o corpo da palavra, gerando fenômenos de imagens, sons, ritmos, cor em
quadros de versos imagéticos singulares e obscuros. As lembranças do poeta
interagem com a memória viva que codifica em imagens vivas como “velhas
fotografias, livros amarelos, papéis velhos” ou no poema óleo esclarece que é (mais uma vez/ traído pela memória/ a curta de
parcas lembranças” ou o próprio teia de
aranha e assim corre o livro inteiro lembranças
baças para não dizer em toda a sua obra com a titulação de seu primeiro
livro Poemas do Século Passado (1982-2000),
não são registros do passado, nem montagem de uma natureza morta, pelo contrário,
são imagens vivas de seu tempo.
A conversa é uma dinâmica viva, não impõe uma
voz em seus textos, tanto que em seus últimos trabalhos não encontramos nenhuma
pontuação, a não ser os parentes “()” para esclarecer a provável obscuridade de
seus textos. Lemos também os espaços em branco, apesar de distribuir o poema em
versos livres e brancos, não se apropria da totalidade da página em branco, mas
preocupa-se com criação de imagens obscuras transpassadas por sons a partir de
aliterações e assonâncias. Como os versos “as pálpebras/ alquebram/ em sono
senil” no verso seguinte “as sombras/ são pedras duras/ de quebrar/ em sonhos”.
E assim, constrói seu ritmo poético.
Vale a pena lembrarmos que não utiliza letras
maiúsculas, nem no título dos poemas, nem no inícios de seus versos. Deixa
solto para que o leitor possa transpor seu corpo e voz ao corpo do poema. Há
letras maiúsculas somente para os substantivos próprios no interior dos poemas.
Desta forma, não encontramos inconsciência ou tropeços de uma manipulação
regrada pela instituição de pontos e letras maiúsculas.
Embora nos poemas de EBC façam analogias aos
sonhos, desmascaram a materialização do sono, recorte de inconsciência,
percebemos em sua poética o trabalho minucioso do olhar, não um olhar qualquer,
mas um olhar observador, terno do namoro sagrado dos elementos da Natureza, de
um olhar que está sempre com fome em capturar imagens. Aí está o livro a fome insaciável dos olhos, de um olhar
desejante e faminto de imagens. Estas imagens
apresentam-se singulares e obscuras, tais como no primeiro verso do poema tudo o que se pedes – “se tudo o que me
pedes/ é meu olho ainda quente/ sobre a palma rósea/ desta mão de luas novas/
(gelo orgânico)” ... Camargo trabalha com o paradoxo visível e enigmático, já
que é perceptível o gelo derretendo sobre a mão, no entanto, pinta com as
palavras a lembrança da obra surrealista do artista plástico Salvador Dalí em A persistência da memória, visto que
parece carregar um olho sobre a palma da mão que pede tudo, que tudo é
possível, inclusive a solicitude de um olho. Contudo, propõe o não desnudar a imagem,
pintado com metáforas em que tenta traçar a visualidade ao trazer o “gelo
orgânico” na palma da mão humana ou no poema em que prato e xícaras respiram.
Essas e outras imagens são capturadas pelos olhos famintos que são insaciáveis.
Os elementos em seu trabalho não conduzem
como seres mortos, porque ganham autonomia e liberdade no sono e sonhos. Essas
imagens são singulares e “sonho vivo/ quando morto”, sonho que estou morto e
estas me devoram com os olhos”. As
imagens singulares são fortes, compõe o mundo imagético, da reflexão, do
espelho, da memória, de uma irrealidade real, poética, ritmada. Efetua a mimese
platônica ao adentrar no perigo poético com sensibilidade profunda de todas as
sensações, aspiradas pelos múltiplos olhares, visto que não é apenas o poeta
que olha, as imagens olham, o olho olha, ganha vida a todos os elementos, são
protagonistas provocando uma dialética subjetiva.
Esta imagem não é fruto da inconsciência, mas
do trabalho de montagem, aglutinando imagens familiares a estrambólicas,
aproximando as imagens ao território infantil, do mundo das possibilidades,
procura um olhar primeiro, pueril, escondidos nas próprias palavras, no
carregar esquizofrênico, criativo da humanização do objeto poético. Isto porque
configura o sensível do olhar incansável, insaciável que dinamiza em todos os
poemas em todas as palavras que lembra ou deixa vestígio dos olhos – dos olhos
que não somente pertence ao poeta, mas multiplica entre os leitores, o poema, o
poeta, de um olhar que comunga o eu com o outro.
[1]
Márcia Plana - Professor Efetivo em
Língua Portuguesa e Literatura (SEE-SP) -Mestre em Literatura e Crítica
Literária (PUC-SP) -Letras (FIRP-SP) - Pedagoga (UNINOVE-SP)
Leitora, crítica literária, profa. da E.E. Olavo Hansen,
escreve poemas, participa do grupo de escritores da cidade de Mauá nominado Taba
de Corumbê e dos Estudos de Poética: Interconexões Diacrônico-Sincrônicas na
Poesia Brasileira e Portuguesa (PUC-SP).
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