sexta-feira, 15 de janeiro de 2010
Galos, Noites E Quintais
Galos, Noites E Quintais
Belchior
(do segundo álbum do cantor brasileiro, Coração Selvagem, lançado em 1977 pela WEA)
“Quando eu não tinha o olhar lacrimoso
Que hoje eu trago e tenho
Quando adoçava o meu pranto e o meu sono
No bagaço de cana de engenho
Quando eu ganhava esse mundo de meu Deus
Fazendo eu mesmo o meu caminho
Por entre as fileiras do milho verde que ondeiam
Com saudades do verde marinho
Eu era alegre como um rio
Um bicho, um bando de pardais
Como um galo, quando havia
Quando havia galos, noites e quintais
Mas veio o tempo negro e a força fez
Comigo o mal que a força sempre faz
Não sou feliz, mas não sou mudo
Hoje eu canto muito mais”
Quando se tem quinze anos o mundo é muito maior, as tardes são intermináveis, as nossas certezas, sólido concreto. Ou pelo menos foi para mim. O tempo era lento e implacável, e acho que todos queríamos fazer logo dezoito anos, transar, dirigir um automóvel, ficar independente, trabalhar, ter o próprio dinheiro e dar o fora. Tudo isso ao mesmo tempo e para já. Não fiz nada disso, comecei a trabalhar no ano seguinte, tive de esperar mais um ano para transar, minha namorada engravidou e ficar independente significou ter uma família para criar, viver com pouco dinheiro, e nada de dar o fora, fomos viver em um quarto e cozinha nos fundos da casa de meu sogro. Ao menos comprei um carro velho, que dirigia para cima e para baixo até acabar a gasolina.
Havia um esboço de poesia, escrevia envergonhado nos cadernos de escola, em que quase nunca copiava as lições, algo que não compreendia totalmente. Ao ouvir as canções do Belchior, batia uma nostalgia louca, em quem nem viveu a vida ainda, mas se lembrava de coisas que ainda não havia acontecido.
É tragicômico, que hoje muitos anos depois, e bastante depois, tudo faça sentido mais nitidamente, embora não resolvi alguns nós górdios, pois estou atado à carroça da vida, e não sou nenhum Alexandre, para cortar tudo com a espada. Minha obsessão é desatá-los um a um. A poesia quase singela de Belchior traz elementos de outros poetas, há muito de João Cabral de Melo Neto nestes “galos, noites e quintais”, e até Antonio Machado, “Fazendo eu mesmo o meu caminho”, não sei se de propósito ou por sincronismo, sei que o pessoal da MPB dos anos setenta lia muita poesia, e havia poetas maravilhosos fazendo as letras das músicas. Hoje sei que não só os caminhos se fazem ao nosso andar, como se desfazem assim que passamos por eles. Não há retorno, não há a menor possibilidade de se voltar para trás, corremos o risco de como a esposa de Lot descobriu, nos tornarmos uma estátua de sal amargo de lágrimas dependuradas em galhos de árvores secas.
Sei que de alguma forma esta música significou o fim de minha adolescência, desisti da faculdade, desisti da música e penso que desisti um pouco de mim mesmo também. Engrenei em empregos muito pouco significativos, ordinários e medíocres. Trabalhei sempre para sobreviver, e à medida que envelheci, foi ficando mais difícil estar empregado, não é uma questão de dinheiro, houve momentos que até ganhei bastante, o bastante para ter casa própria, estudar a filha, ajudar minha companheira a se formar na faculdade. Nunca consegui conciliar trabalho com carreira, o que eu queria era escrever, o que fiz e muito, mas sempre como uma atividade paralela. Como se a poesia e a vida não pudessem se misturar, como se a poesia fosse uma amante que eu tinha, uma vida em paralelo com a realidade, e cada vez mais distante uma coisa da outra.
Tirando o bucolismo rural, pois cresci e ainda vivo em uma área suburbana da capital, havia “galos, noites e quintais”, e cana de açúcar no quintal imenso da casa de meu falecido avô (agora não me parece tão grande) e milho nos arrabaldes com chácaras e terrenos baldios. Corríamos como cães vadios, pulávamos cercas, tínhamos todo o espaço do mundo. Depois a solidão foi apertando o cerco, cada um cuidando de sua vida, cada qual com seu fardo e sua sina.
“Hoje eu trago e tenho” um “olhar lacrimoso”, e tem se ressignificado os versos da canção que me traz lembranças do passado, mas ainda está presente em minha vida, talvez na atualidade faça muito mais sentido até. A poesia tomou vulto em minha vida, agora a luta pela sobrevivência é que é a vida paralela, sou poeta o tempo todo, assaltado e sobressaltado pelo poema. Os versos me passam na frente dos olhos, como últimas lembranças de quem vai morrer. Ser triste não significa necessariamente ruim, bebo minha cerveja e meu vinho, conto as artes de meu neto aos amigos, ficar sozinho com uma criança em casa é impossível. A felicidade não existe e portanto a infelicidade também não. Corremos todos para a morte, mas quem está com pressa?
“Não sou feliz, mas não sou mudo
Hoje eu canto muito mais”
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7 comentários:
Só para me contrariar, estou fazendo faculdade de Pedagogia.
Caro Poeta, seu texto amplia a vida de tantos que - como eu - fizeram suas vidas em torno da utilidade: sempre na esperança de encontrar o ponto de partida: e ter seu próprio trajeto. Aprender a ensinar enquanto aprendizado é o valor que podemos conciliar em vida. O restante, coisa de endinheirados, como escreveuo Mia Couto. Grato pela crônica. Abraços, Pedro.
ótimo, tb me sinto um tanto como vc.
viva belchior.
gostei!
É, e nos afogamos todos os dias; as vezes em águas cristalinas, mas, na maioria das vezez temos que cuspir o sal das águas.
Cresci ouvindo Bel e lendo o que escreveu compreendo a sincronicidade. Se o que os fazem compor lindas canções são a poesia, o que me fez gostar delas foram suas canções. Ogrigado mestre por sempre escrever o que eu gostaria de ler! Belíssimo.
o galo canta
no quintal do vizinho
e em mim, saudade...
Hoje não tenho mais quintal
Mas um galo perdido no tempo
canta ainda para mim
todas as manhãs.
Um abraço.
Desculpe, Edson, mas você continua um belo galo - cantando para acordar o sol e brigando por seu lugar ao sol.
Abraços.
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