segunda-feira, 8 de março de 2010

Blogagem Coletiva - "100 anos do Dia Internacional da Mulher - Celebrar o quê?"



Todas as Vidas


Cora Coralina




Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...


Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.


Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.


Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.


Vive dentro de mim
a mulher roceira.
- Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos
Seus doze netos.


Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.


Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.


CORALINA, Cora. Todas as Vidas. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Global editora, 1984, p. 45-46 -
Todas as Vidas de Cora Coralina na visão da teórica Hélène Cixous





Blogagem Coletiva '100 anos de Dia Internacional da Mulher - Celebrar o quê?'



Cora Coralina, no poema “Todas as vidas”, encarna muitas mulheres, que poderiam ser tranqüilamente todas as mulheres. Faltaram as profissionais liberais, que à época da construção do poema não estavam ainda em tão evidência, ou que infelizmente por sua posição social e econômica, tem de fazer o papel social de homens, inclusive em sua cota de opressão. Ausentes também estão as mulheres que trabalham na área da saúde, se os médicos homens são maioria, no “chão” dos hospitais, os serviços mais duros, são executados, quase na sua maioria, por mulheres, e não falou das professoras, em especial das primárias, que em sua maioria quase absoluta fazem parte do corpo docente. Mas se olharmos com atenção, veremos de uma forma ou outra todas as mulheres ali representadas. A poeta Cora Coralina perscruta suas almas, e ouve no silêncio que se estabelece, todas as nossas almas. São das mulheres todas as vidas, são as mulheres que cuidam para que se preservem todas as vidas.

Se pensarmos no que se estrutura um país, para seu desenvolvimento, crescimento e sua manutenção, o papel mais importante é relegado às mulheres. E nas sociedades subdesenvolvidas à margem, como em nosso país, entendemos bem o nosso descompasso, quando vemos o quão pouco valorizadas são estas profissões. Vemos nesta situação um grande erro estratégico, quando transferimos para a profissão exercida por mulheres, todo o preconceito e desprezo histórico e histérico pela mulher. Cometemos um suicídio intelectual e físico. Trabalhassem as profissionais pelo que ganham e não pelo que merecem, a coisa não estaria ruim, já teria quebrado em mil pedaços.

A construção da opressão tem um círculo perverso que utiliza os oprimidos como agentes da opressão. É assustador imaginar o que se passa em outros lugares fora da realidade cotidiana dos grandes centros, onde de alguma forma, existe um mínima proteção legal para as mulheres, e ainda ocorrem massacres cotidianos contra suas condições. O que imaginar dos rincões de nosso país, ou lugares dominados pela exploração humana e da intolerância religiosa. Onde impera a dor e o silêncio, violência física e moral, o trabalho mais penoso ainda, os estupros, as mutilações físicas, a igualação com a criação de animais e seu respectivo comércio, a diferenciação da alimentação, onde as meninas não recebem o mesmo alimento que os meninos e são forçadas a trabalhar mais penosamente; ou tudo isso junto, mais o fato que devem permanecerem dóceis, comportadas, em silêncio, com o risco de serem severamente punidas ao menor e insípido sinal de rebeldia.

Por tudo isso que me recordo incessantemente da máxima de Bakunin, que fala que enquanto houver um escravo na terra, todos seremos escravos. A servidão do irmão humano em outro canto do planeta é a nossa servidão também. O mesmo podemos falar da condição da mulher, apesar dos avanços que ocorreram dos anos 1960 para cá, ainda há muito que conquistar, há muito o que romper em nossas psiquês, a opressão está no fundo de nossos subconscientes esperando o momento oportuno de se manifestar. Uma prova cabal disso são nossos xingamentos e ofensas pessoais. Nota-se, não por acaso, que todos os calões, frases feitas e tentativas de inferiorização do outro, envolvem de alguma forma uma condição feminina: o filho sem paternidade, a profissão aviltante, o homem em condição de mulher, sempre é o feminino que carrega a raiva e o ódio de gênero. Quando insultamos, mostramos nossa verdadeira formação e o ódio histórico contra a mulher, e com risco de criar algumas polêmicas, das próprias mulheres. Não consigo ver um único humorista ou comediante que não saia mais cedo ou mais tarde com uma afirmação misógina, me lembro da pérola literária do grupo de humoristas “Casseta & Planeta”, “Mãe é mãe,/ paca é paca,/ mulher; / mulher é tudo vaca.”, esquecendo o autor que sua progenitora também é mulher, e apesar de acreditar-se no senso comum que mães são assexuadas, foi necessária uma relação sexual para que esta concebesse, nega-se à mãe não só a sua condição de mulher, nega-se a esta o fato de poder ter prazer com seu corpo. Creio que devemos deixar as explicações possíveis para isto tudo com os psicanalistas freudianos.

E onde estou querendo chegar: estou pronto a dizer que a opressão contra a mulher também oprime o homem, estamos juntos no mesmo barco, encurralados no mesmo beco, e se não encontrarmos um ponto de alteridade, sempre seremos explorados. O homem enquanto gênero quando oprime a mulher, é também agente da opressão para consigo mesmo. Há um tempo, em um regime opressor, mais cedo ou mais tarde sobra para todo mundo. É certo que o papel mais doloroso está ficando para a mulher, estamos partindo do enfoque sociológico, quem sente na carne a dor física, a privação, a diferenciação salarial, não está necessariamente aberto ao ponto de vista das conjecturas. Mas ao classificar a mulher como gado, esta é boa para isso, essa outra para aquilo, esta ainda para aquilo outro, está limitando potencialidades que usadas plenamente seriam benéficas para todos. É na insatisfação do desejo que operam as forças que realmente ganham com o atual estado de coisas. Criam mulheres ideais e idealizadas, e que não existem; para vender cerveja, ou manter as mulheres infelizes com os próprios corpos, quando a insatisfação sexual não está na ausência da beleza maravilhosa ou do corpo perfeito, mas na abordagem que se faz de sua libido. O melhor do sexo é se tocar de olhos fechados, é sentir o calor do outro, e ter contato com as mentes. O órgão sexual mais importante, ainda é a cérebro dentro da cabeça, e não a cabeça fora do cérebro.

O que me deprime é que em certos aspectos, o machismo dos homens jovens está voltando para o tempo de meus avós. Em uma época de possibilidade de escolhas, se retorna a um momento em que não havia opções, a crença comum tinha supremacia sobre a lógica e a razão. Lembrando Santa Tereza d’Ávila, quando afirma que mercenários é que esperam paga por dia, vivemos em uma realidade mercenária, onde só vale a paga por dia, quando Kant pensou o homem como ser digno, porque não tinha preço para a venda, não imaginou que na pós-modernidade, os seres humanos voluntariamente se colocariam a venda, e por coisas mais fugazes ainda que a sobrevivência. Passamos de primatas a cata de comida, por primatas a cata de bens não duráveis, nossa dignidade talvez valha um celular, computador ou outras quinquilharias eletrônicas. Pior ainda vivemos pela promessa que nunca será cumprida da satisfação total. Somos escravos de nossas escolhas, e em uma sociedade de individualismos extremos e competição acirrada, cabe aos mais fracos e oprimidos históricos o tombo maior. E tudo esquecido o fato que para cada um que chega na reta final, há uma centena de milhar que só olha. Nesta corrida no entanto foram jogados fora como peso a dignidade e a compaixão. São as mulheres que acabam recolhendo nossos restos pelo chão do caminho. O feminino é que poderá salvar-nos de nós mesmos. Descobrir que quando se oprime a mulher, se oprime toda a humanidade.

2 comentários:

Edson Bueno de Camargo disse...

Texto pertinente com o assunto.

http://marjorierodrigues.wordpress.com/2009/03/07/dispense-esta-rosa/

Inês Barreto disse...

Lindíssimo o poema da Cora Coralina. Preciso conhecer mais escritos dela.