sábado, 7 de fevereiro de 2009

O poder de penetração da mídia chamada novela.




Fico assustado com o poder de penetração da mídia chamada novela das oito, que afinal nem começa mais as oito horas da noite em ponto, horário nobre dos anos de ouro da tevê brasileira, onde a Rede Globo era a voz da nação. Questões que estão mortas como assunto há muito tempo, ou que se entabulam contendas por décadas, são apresentadas como novas, gerando polêmicas e altas discussões nos cabeleireiros, portarias e botequins. Problemas éticos profundos são resumidos a simples promovedor de audiência, sujeitos a uma “opinião pública” questionável em suas razões e formação intelectual. Não vou dizer formação acadêmica, pois acúmulo de conhecimento e informações nem sempre se faz em escolas. Além da preferencial necessidade que a escola seja um produtor de conteúdos (o que nem sempre acontece), hoje cada vez mais, a informação deve e pode ser buscada em inúmeras fontes, e não estou falando apenas de buscadores da Internet, existem ainda por incrível que pareça: livros, jornais e revistas impressos. Sebos e bibliotecas são o principal reduto destes objetos. Qualquer um que faça parte dos 25% da população realmente alfabetizada pode buscá-los como fonte. O vácuo de discussões na academia faz do Brasil o paraíso dos propedeutas e autodidatas. O boteco, e agora mais tardiamente a igreja evangélica, são os depositários da inteligência nacional.

Recebi alguns e-mails alarmistas desde o início da nova telenovela da Rede Globo, “Caminho das Índias”, onde a emissora espertamente utiliza no título uma lição de história dos nossos primeiros livros, mas não recuperam a memória do glorioso Bartolomeu Dias que abriu o caminho para as Índias (e de quebra descobriram o Brasil no processo). Uma destas mensagens eletrônicas alertavam para tomarmos cuidado com a visão idílica que a novela dava da Índia, e depois desfilam uma série de fotos descontextualizadas onde mostram situações de miséria e outras que não bem explicadas soariam macabras. Outra mensagem, mais complexa, nos conclama a rezar pelas almas do dalits ou “intocáveis”, que segundo o e-mail se livrariam da servidão e da perseguição de casta se convertendo ao cristianismo.


Há um choque cultural bem evidente nestas mensagens, a nossa cultura é tributária da cultura indiana, existem palavras do sânscrito em nossa língua (açúcar deve ser a mais utilizada), existem muitos alimentos e costumes indianos sincretizados em nossos costumes. Enquanto o Brasil ocidentalizado existe a quinhentos anos (e destruímos quase totalmente as culturas anteriores à isto), a Índia é uma cultura milenar, só comparável à chinesa em riqueza de detalhes e longevidade. Mostrar cultos funerários de um povo sem dar as devidas explicações sempre vai soar grotesco. Animais comendo lixo é comum em nossos centros urbanos, só não há muitas vacas, que aqui não sendo sagradas seriam devidamente devoradas. Confusão urbana podemos exportar, aliás, nossa banda pobre e inculta já foi comparada à Índia, havia a expressão Belíndia, sendo que a parte rica era a Bélgica, em um claro preconceito social e etinocentrista.


O mais complicado é o correio eletrônico a que se refere aos “dalits”, “intocáveis”, ou párias, que em português passou a dar nome a todos os excluídos da sociedade. Pensando muito bem, poderíamos adotar o nome de párias aos moradores de rua brasileiros, por exemplo, com uma diferença fundamental: o preconceito no Brasil tem origem social, muito disto é herança da nossa sociedade ainda presa a idéias escravocratas, nossos párias comumente são negros e descendentes diretos dos antigos escravos. Por mais cruel e inconcebível seja a relação negro versus pobreza, nada se compara ao peso de um preconceito de casta. No Brasil temos uma forte permeabilidade entre as classes sociais. Em uma sociedade de castas isto está longe do possível. Você nasce em uma casta, morrerá nela, e toda a sua geração, portanto seus filhos netos e o que mais vir. O casamento entre castas é inconcebível, e as relações profissionais estão também relacionados à casta, sendo os párias a base da pirâmide, a que suporta o peso de todo o preconceito e intolerância da sociedade. Em um povo sem iniciativa pessoal e individual, funciona, nas sociedades ocidentais esta relação perversa gera a criminalidade.


Vista de dentro para fora, nos parecerá cruel, mas não é menos cruel que a nossa relação com os pobres e subalternos, podemos chamá-los de “invisíveis”, pior do que não poder ser tocado, é não ser visto (Existe uma pesquisa e tese de mestrado do psicólogo Fernando Braga, que gerou o livro “Homens Invisíveis: Relatos de uma Humilhação Social” da Editora Globo.). Há tal menosprezo por certas profissões que se não fôssemos uma República democrática e de estado de direito (mesmo que torto) não haveria por aqui uma relação muito diferente que a relação de casta. Some-se a isto tudo o fato de estarmos sob o fardo do capitalismo, que perverte e precariza as relações de trabalho. Os explorados o serão de uma forma abominável no interior da Índia, China, América do Norte ou no Brasil. A relação explorador / expropriado acontecerá onde se permitir isso. Como o e-mail nos conclamava a orar para que o párias se convertessem ao cristianismo, não deixei de reparar com certa ironia, que nas Américas o cristianismo amansou o ímpeto guerreiro das nações conquistadas e posteriormente, demonizou a religiosidade dos negros escravos e seu desejo por libertação. Não vejo como os nossos irmãos oprimidos da Índia poderiam obter alguma vantagem em renunciar sua religiosidade ancestral, uma vez que não é só a religião que gera a opressão e exploração, mas sim o capitalismo mundial globalizado, que amplifica as precárias relações culturais destas sociedades. Isto sem dúvida lhes criaria mais problemas, pois além de tudo o que sofrem, seriam perseguidos como minoria religiosa também.

2 comentários:

Cristina Violante disse...

Edsom você fez uma crõnica realmente verdadeira, o que eu poderia dizer além se vir aqui e enaltecer a maneira que dixou aqui registrado uma vergonhosa realidade.
Parabéns pela maneira tão séria que conduz seu trabalho. Me orgulho em ser sua amiga.
Maria Cristina Violante

Cristina Violante disse...

Edsom só posso vir aqui enaltecer, a maneira que conduziu este assunto.
Nos levando assim a realidade que muitos não enxergam, não vejo nada a acrecentar, apenas quero dizer que concordo com você, e me orgulho em ser sua amiga.
Parabéns pelo amor que tem e o tempo que dedica a cultura.
Ah!
Se todos fossem iguais a você!
Maria Cristina Violante