sábado, 29 de janeiro de 2011

"Meu pé de laranja lima" - comparações




Não me lembro ao certo quando li pela primeira vez o livro “Meu pé de laranja lima”, houve um período em minha vida que lia livros em uma febre faminta de letras e parágrafos, que nem sempre me dava conta do que lia. Lia livros em algumas horas e depois os relia, muitas vezes. É como devorar árvores pensando no papel que será escrito. Algumas coisas levei anos para digerir as idéias, outras nunca digeri direito, outras ainda aparecem como fantasmas em meus poemas. Em outras ocasiões não terminava de ler um livro e começava outro (um hábito que descobri depois era praticado pelos surrealistas franceses).

“Meu pé de laranja lima” me marcou profundamente, quer pela narrativa, ou porque me identifiquei com o personagem (apesar do pequeno hiato do tempo e espaço do livro e o da minha meninice), quer pelo fato que tinha muito a haver com minha infância, solidão, quintais, árvores e traquinagens. Decerto o meu quintal tomei emprestado aos meus avós, com suas bananeiras, mexeriqueira, abacateiro, e nunca um pé de laranja lima. Mas as ruas de terra batida, as brigas na frente da escola, e as surras por qualquer motivo (e eu os dava), fizeram me enxergar no Zezé, e imagino quantas crianças de meu tempo não o fizeram também. Se existe uma coisa uniforme e democrática é a pobreza, que praticávamos em comunhão. Éramos todos iguais, a correr como vento e poeira, a subir nas árvores e rolar na grama como cães vadios. Estavam ali os terrenos baldios, as ruas de terra, os esgotos à céu aberto, só não havia uma grande estrada de rodagem para atravessar, minha cidade era, naquela época, tão miserável que se contavam os carros nos dedos (hoje temos uma grande frota e engarrafamentos, o tempo corrige tudo).

Descobri já adulto que tinha uma dívida moral com José Mauro de Vasconcelos, minha mãe comovida com as surras de Zezé, amainou as minhas, portanto é possível que algumas sovas me foram poupadas. 

Assisti o filme “Meu Pé de Laranja Lima” na televisão preto e branco que tínhamos em casa já no fim de minha adolescência, um filme brasileiro de 1970, dirigido por Aurélio Teixeira, que dentro de minha visão é muito fiel à história do livro, os cenários escolhidos eram muito parecidos com a minha cidade, o trem cruzando o centro, os carros velhos dirigidos por motoristas portugueses. Desde então a figura de Zezé e de minha infância triste se confundiram definitivamente. Sempre me senti a pessoa certa no lugar errado e no tempo errado. Sensível demais para uma realidade bem crua. Até no fato de ter entrado na escola mais cedo éramos parecidos. 

Lembro até hoje de minha professora de português do ensino médio, naquela época do colegial, a Dona Olga, pessoa que sempre respeitei muito, muito rígida e cheia de princípios, me disse categoricamente que José Mauro não era um escritor respeitável, pois tinha uma linguagem inadequada e cheia de erros de linguagem e gramática, “Meu pé de laranja lima” não era literatura. O que me deixou muito chateado, pois a palavra de nossos professores era muito importante, penso que foi a primeira de muitas discordâncias que tive com o establishment. Descobri por minha conta no estender do tempo, que o que importa em literatura é o que nos toca e que devemos ler tudo, até o que não gostamos. Desta forma mesclei em minhas leituras best sellers como “O pequeno príncipe”, “O menino do dedo verde”, “Fernão Capelo Gaivota”, junto com os romancistas russos, li furiosamente “Crime e Castigo” que peguei emprestado com meu primo, além da poesia de Fernando Pessoa e Cecília Meireles, de enciclopédias, dicionários, a Bíblia, bulas de remédio, muitas HQs e diariamente o jornal “Notícias Populares’, que meu avô comprava e deixava na sala de sua casa à nossa disposição, não necessariamente de forma voluntária (meu primeiro grande interesse eram as moças em trajes sumários do segundo caderno e os quadrinhos). 

Só fui entender a fala de minha professora do médio, ao ler o Professor Marcos Bagno, e seu fantástico livro “Preconceito lingüístico”, muitas vezes o que indica o caminho de certos intelectuais é o preconceito que permanece no Brasil desde a nossa patética aristocracia, que tenta eternamente se replicar e a sua visão escravista, sua principal filosofia. Preconceito que não morre apesar de estar sempre sendo escancarado à própria vergonha. 

No entanto como me disse um dia o poeta Cláudio Willer, livros tem uma capacidade orgânica de entranhar pelos meandros da mente humana e chegar a lugares físicos que nunca imaginamos. Um belo dia, para minha surpresa, leio um artigo que afirma ser “Meu pé de laranja lima”, um livro muito popular na China, recomendado pelas autoridades educacionais, um livro que tem influenciado gerações, pela singeleza de seu personagem principal, e sua capacidade de sobreviver inocentemente em meio a um mundo cruel, que lhe tira até o amigo vegetal. É incrível imaginar o salto cultural que este livro deu, e o trabalho imenso de seu tradutor para o chinês, numa conversão de culturas tão díspares e distantes, e no entanto os depoimentos encontrados no artigo me lembram a maneira como sempre encarei o livro, como que seja possível uma universalidade através da literatura, e da linguagem simples como foi escrito, através da ternura e da compaixão, que todas as crianças um dia foram colocadas em um momento de solidão absoluta, e a partir dai partiram para conquistar o mundo. 

Me tornei poeta não por opção, a poesia foi tomando conta dos vazios que tinha na alma. Se pudesse optar teria escolhido o caminho para o sucesso profissional e financeiro. Poderia viver sem culpa uma vida medíocre e produtiva. Mas os olhos depois de abertos, não podem se fechar à luz. As portas se abriram e não é mais minha prerrogativa fechá-las. Para alguns o verbo é mais forte que o pão. 

E por mais que lhes pareça às vezes este poeta uma pessoa dura, arrogante e amarga, tem um Zezé aqui dentro, acreditem, tramando traquinagens, correndo livre pelos quintais e arrabaldes. Lutando para vencer a tristeza que está a cada dia tomar conta de tudo. 



Um comentário:

Sarah Helena disse...

Homem, não sou de comentar muito, mas preciso dizer.

Vc é foda. Conseguiu explicar o livro e a china e e tudo e com uma perfeição de murro na traquéia.