Zabé da Loca
és como foi minha avozinha
lenço amarrado na cabeça
olhos grandes de olhar comprido
destes que devoram tudo com carinho
e cuidado
gente de granito e pés suaves
mesmo para trilha de pedras
mulheres com dobras e rugas
quase uma centena de anos cansados
rostos com sombras
e o dedo com o osso apontado
mulheres de parar o vento com o silêncio
e mover pedras com o sussurrar
constroem casas com barro
cacimbas no seco
donas da terra e da água
e aproximam o ventre do ar
senhoras que vestem o mundo
e tecem com os panos
e fiam o algodão das nuvens
ai que os anjos esfarrapados da caatinga
os anjos vaqueiros e pascentadores de bodes
os anjos moleques a tramar travessuras
os anjos de todas as partes e os afogados
e o louco poeta na margem da metrópole
todos param para ouvir
um pedaço de cana soar as trombetas do céu
a parte que te cabe
para o amigo Celso de Alencar
Circe
amarrou a Ulisses
com não correntes
usou os músculos de sua vagina
mesmo estando em êxtase
a saudade de seu chão
e do cheiro do esterco das ovelhas
o chamavam para casa
e se libertou
Circe disse fica
mas Ítaca clamou mais alto
o esperava em casa
uma vagina mais mansa
e doméstica
sem grandes bailados
e malabarismos
mas que demonstrou um furor selvagem
ao se fechar aos machos
que não eram para ela
e na vingança e na morte
se abriu em sorriso
enquanto seu homem
trespassava seus adversários com flechas
nas noites que se seguiram
Ulisses não sentiu saudades
da insaciável bruxa deusa
Penélope
cansada de tecer
exigiu a parte do homem
que lhe cabia
René Magritte
no alto de um poste
um homem lê um livro de poemas
a paisagem corre
vertiginosa à sua volta
aquela silhueta
imprime ao horizonte
um não reconhecimento da lógica
o homem lê absorto
em confortável estética
como se fios invisíveis
desenhassem suave poltrona
o olho observador
vê uma queda
iminente demonstração
das leis de Isaak Newton
ou seja
a queda como a de uma maçã de uma árvore
não há construções
de toda a filosofia disponível
que sustentem um homem no ar
ou pior
no alto de um poste de eletricidade
para nós que o vemos
em tal posição de perigo
inspira o medo e a inveja
indiferentes ao homem
e o possível dilema alertado
dois corvos
alçam vôo
criando duas manchas
no azul perfeito do céu da tarde
tudo o que me pedes
se tudo o que me pedes
é meu olho
ainda quente
sobre a palma rósea
desta mão de luas novas
(e gelo orgânico )
deixa ao menos
que veja o Sol se quebrando
sobre as costas azuis das montanhas
entre frestas rutilantes
das entranhas da luz
desde teus cílios
molhados pelo orvalho
a correr sob as pálpebras
de ágata leitosa
este majestoso fogo
em espectros de infra-vermelho
desta gigante agonizante em tua íris
ah! mãe dos deuses
(das mulheres de ventre de barro e lava ardente)
que me reste agora a escuridão
de antes de ter nascido
do mar salgado de tuas vestes
eis que voltamos sempre
ao lugar que em êxtase e dor
nos gerou
tenho sapatos rotos
Poema conversando com Leonard Cohen
riscados de pedra e ladeira abaixo
tenho sapatos de pedra branca
e a terra insalubre de minha infância
o saibro que se desfazia ao vento e a água
e da infâmia acústica de meus ouvidos
tenho os pés lavados de agora
na torneira da chegada
e asas de santo vagabundo de estrada
tenho a beatitude do agora
e o medo obscuro que nunca me chegue a morte
tenho asas dobradas dentro de sapatos rasos
rasgadas à seda de uma lágrima
calçados de caos e areia diluviana
antes a dúvida perturbadora
dos incensos e sírios nas igrejas
da fé não respondida
à certeza que carrego agora
CONCURSO LITERÁRIO DE SÃO BERNARDO DO CAMPO – Premiado na Categoria Poesia Nacional – 2010 - São Bernardo do Campo - SP.
Um comentário:
a quatro mãos.
[Leonard achou quem o merecesse]
beijo
El
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