domingo, 12 de setembro de 2010

Leitura estética de Cabalísticos, Edson Bueno de Camargo




Leitura estética do livro Cabalísticos, de Edson Bueno de Camargo

Beth Brose (*)

O pedido de José Geraldo para falar sobre duas obras literárias em 13 minutos geraria certa ansiedade, pois não há fórmula para colocar toda a vivência poética de uma leitura intensa em um tempo tão exíguo. Prevenindo a todos sobre esse fracasso, começamos a tratar de Cabalísticos, livro de poemas de Edson Bueno de Camargo.

A leitura que proponho é aquela que parte da teoria dos estratos de Roman Ingarden, o autor de Untersuchungen zur Ontologie der Kunst, A Obra de Arte Literária. Isso quer dizer que, primeiramente, o ouvinte e/ou leitor ouvirá a massa sonora e/ou verá a grafia como atos de pura intenção ou de intenção vazia, pensamento conceitual vazio. Quem tiver o livro, por favor, acompanhe ‘Asas de vidro’, na página 95.


asas de vidro

anjo de asas de vidro
escorrem pelas tuas costas
líquidas
escamas de peixe
perfume de pequenas margaridas
secando sobre lápides invisíveis

odor de tardes vermelhas
faz lembrar lavanda verdadeira
caídas e caladas flores roxas
em escadas de jade
lisas como o talco pedra moído e branco
no vento que move teus cabelos

(...)

Passado o momento dessa sonoridade e grafia que se instalou em nossas mentes como massa, chegamos ao 3.° estrato, aquele que nos remete à imaginação na leitura. Esse é o ato intuitivo por excelência, segundo Husserl, é a percepção sensível, também chamada experiência ou doação originária.

Vejamos os substantivos: anjo, asas, vidro.

O anjo é um ser puramente espiritual, servidor de Deus e mensageiro entre Ele e os homens. O anjo tem asas que, no princípio, foram cada um dos membros anteriores das aves e morcegos, modificados especialmente para o voo. Mas também são, em anatomia zoológica, cada uma das nadadeiras peitorais bem desenvolvidas de certos peixes, que permitem pequenos voos na superfície da água.
As asas são de vidro, ou seja, de substância rígida, inorgânica, geralmente transparente e quebradiça, fabricada por meio da fusão a altas temperaturas de uma mistura de silícios (areia) e carbonatos, seguida de rápida solidificação.

Asas delicadas que se deterioram facilmente; pessoa delicada que, por qualquer palavra descuidada, chora.

Anjo de asas de vidro que escorrem pelas tuas costas significa que, num primeiro momento, as asas deixam-se correr em fios ou gota a gota, deixam-se sair; brotar, verter em gotas ou correr em fios como o suor. As asas tombam, descaem como a blusa que lhe escorria dos ombros.

anjo de asas de vidro
escorrem pelas tuas costas
líquidas
escamas de peixe
perfume de pequenas margaridas
secando sobre lápides invisíveis

Fica a critério do leitor escolher a qual substantivo pertence o adjetivo líquidas (asas, costas ou escamas), ou mesmo, eleger os três: asas líquidas, costas líquidas e escamas líquidas de peixe. Escamas que são pequenas lâminas epidérmicas dos habitantes das águas (brejos, rios, mares).

Anjo que tem perfume de flores que secam sobre lápides. Perfume que emana vivo de túmulos, onde os mortos são guardados. Anjo que reativa a vida, de onde não se espera mais nada.

odor de tardes vermelhas
faz lembrar lavanda verdadeira
caídas e caladas flores roxas
em escadas de jade
lisas como o talco pedra moído e branco
no vento que move teus cabelos


O aroma de margaridas lembra um campo de flores roxas, as lavandas. Perfumes florais de tardes vermelhas, de sol se pondo, ou, antes do sol nascer, aquela claridade que aponta o início da manhã. Vermelho é cor da aurora que Homero descreveu em Odisseia como dedos róseos.

“Assim que, nascida pela manhã, surgiu a Aurora de róseos dedos, demos uma volta pela ilha, admirando-a. Ninfas, filhas de Zeus portador da égide , fizeram levantar das suas tocas cabras-montesas, boa refeição para os meus companheiros.” (Odisseu e os ciclopes)

em escadas de jade
lisas como o talco pedra moído e branco
no vento que move teus cabelos

Degraus de minerais duros, compactos e esverdeados; degraus lisos, pó finíssimo como o gesso, que se opõe ao movimento do vento e dos cabelos que lembram

pequenas salamandras amarelas

Salamandras são animais com caudas longas, de corpo alongado, geralmente com aspecto de lagarto, incluindo formas totalmente aquáticas ou totalmente terrestres, assim como espécies anfíbias.

que incendeiam os olhos sonolentos

Esse ser quase mitológico acorda e apaixona o sujeito. Esse anjo é um ser que “sonda a noite de corações latentes que vibram com a música patente das colheres com pouca prata”.

Ou seja, o anjo lembra uma mulher, meio animal, com escamas de peixe: sereia. Ser mitológico feminino, representado sob a forma de ave ou peixe, com cabeça e/ou peito de mulher e, às vezes, empunhando uma lira; sirena. Os primitivos navegadores diziam ter ela um canto maravilhoso, com o qual atraía os marujos para o mar, onde pereciam afogados. É uma mulher de canto suave, sedutora.

Retornando à Odisseia, Homero conta que Circe avisou Odisseu que as sereias fascinam os navegadores e que eles, quando ouvem seu canto, jogam-se ao mar (e morrem!) à procura delas. Odisseu deixa-se atar por laços ao mastro do navio. Ele e todos os seus companheiros têm os ouvidos tapados com cera. Passam, assim, pelas sedutoras sereias sem sentirem o impulso de se afogarem no mar em busca de seus encantos. Odisseu teria sido, então, o primeiro mortal a sobreviver à música das sereias.

A sereia de Cabalísticos parece ser o aspecto (Ansicht) esquematizado, isto é, o inesperado horizonte que surge na obra literária e segue para além dela. Graças à imaginação do leitor, atualiza o que é apenas «esquema» vazio, disponibilidade. As sereias que seduzem e tangenciam a morte sugerida pela lápide já são anunciadas nos agradecimentos do livro:

a todas as Deusas de todos os panteões e lugares
às mulheres no sentido mais amplo do feminino sagrado
à minha amada companheira Cecília
a todos que me precederam e aos que estão por vir
ao meu clã e todos que estão sob sua proteção

Os aspectos esquematizados dão liberdade imaginativa para o leitor que pode ir além das páginas do livro numa atitude intuitiva de recriação.

Cabalísticos - Edson Bueno de Camargo - Coleção Orpheu - Editora Multifoco - 2010 - Rio de Janeiro - ...ISBN 978-85-7961-182-7



(*) Beth Brose - Elizabeth Robin Zenkner Brose é gaúcha, graduada em Letras pela UMESP - Universidade Metodista de São Paulo; participou de vários seminários de literatura na Universidade de Göttingen – Alemanha; obteve o diploma KDS - nível superior de alemão - pela Universidade de Munique e Instituto Goethe de Brasília. É especialista em Literatura Brasileira pela PUC-RS. Mestre em Teoria da Literatura e Doutora em Teoria da Literatura pela PUC-RS.

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